Por Anna Veronica Mautner
“Velhice e fim têm coisas parecidas e coisas diferentes, mas o fim que eu promovo não é igual ao fim que ocorre fora da minha vontade”
Parar de querer pode ser visto como um aspecto de parar de ter curiosidade. É como se não se quisesse conhecer nada mais do que já se conhece. Parar de querer não é uma ruptura, é um definhar não só da curiosidade, mas – bem pior do que isso – da vontade.
Não se trata do que eu posso ou não posso fazer ou promover. É muito diferente de não poder. Quando paramos de querer nos aproximamos da desesperança, do vazio. É quando não vemos nada à frente, no futuro próximo. Eis que surge o espaço para uma pergunta grave: então, viver para quê?
O parar de querer pode vir com a idade, mas não é obrigatório. Há muitos idosos que não conseguem mais andar, mas continuam interessados no que o amanhã lhes trará.
E tem mais: o definhar da curiosidade não é igual à depressão. Nesta não se dá valor para o que pode vir de fora, o que é muito diferente de não querer saber se há alguma coisa fora do "aqui agora".
Reparem que as senhoras idosas nunca ou raramente pedem receitas novas de comida. É desse jeito que o idoso vai se separando do mundo: deixando a curiosidade definhar. Que importa o amanhã se nem hoje quero algo novo?
Velhice e fim têm coisas parecidas e coisas diferentes. O fim imbuído do "não quero saber" é bem diferente daquilo que acaba independente da vontade e do qual eu posso vir até a sentir falta, se for o caso. O fim que eu promovo não é igual ao fim que ocorre fora da minha vontade, sem minha participação.
O avançar da idade aproxima a pessoa de um tipo de fim diferente do que vivencia o jovem nas várias etapas da sua vida. Deixar para trás a boneca, o carrinho, o jogo de panelinhas, é diferente de não conseguir mais se equilibrar no salto alto ou levantar peso.
O idoso não para de fazer coisas; ele deixa de fazer de uma vez por todas. Não quer mais saber, desinteressa-se. Afasta-se sem dor. Quando o desinteresse aterrissa na nossa vida tudo se torna monótono porque nada de novo entusiasma.
Existe o fim e o ir acabando. Existe o não conseguir mais e existe também o não querer mais. São momentos diferentes da vida da gente. Quando começa a predominar o "para quê?" estamos chegando a um momento grave.
O par de olhos que não procura mais o novo no horizonte pertence a alguém que não se surpreende mais. Não se surpreender traduz uma indiferença que torna o cotidiano difícil de ser tolerado. Tudo fica entediante. Cá entre nós, a surpresa é, na verdade, a alma do negócio de viver bem.
Esperar, aguardar, sonhar, imaginar muitos "depois" preenche a consciência de todos os seres humanos indistintamente, não importa a época, a idade, a origem, a raça, o gênero. Imagino que o homem das cavernas ansiava pela chuva da mesma forma que o jogador na mesa de roleta torce para sair o número que escolheu. Também os pais esperam ansiosos pelo nascimento de cada filho, não só o primeiro.
Cada um é uma nova surpresa. Sem falar da espera pelo prazer fugaz, porém não menos desfrutável, do cheiro de bolo fresco recém-saído do forno ou do pastel de palmito que está sendo frito na frigideira.
Parar de esperar é o começo do fim. Nós todos gostamos de correr atrás de uma cenoura. É a cenoura nossa de cada dia que nos move.
Anna Mautner é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de Cotidiano nas Entrelinhas: Ed. Ágora
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/05/1627701-anna-veronica-mautner-a-forca-do-querer.shtml
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