14 de março de 2017

O caráter cristão em tempos de crise

Vale a pena começar citando a sutil diferença entre os termos passivo e pacífico. Passivo é alguém alienado, pacífico é alguém não-violento. Mahatma Gandhi, Luther King, entre outros, jamais foram alheios aos problemas e as mazelas da sociedade do seu tempo (passivos). Tão pouco Jesus o foi. Todavia, nunca foram violentos (pacíficos).

Sobre caráter, alguém disse certa vez: “Existem três situações em que uma pessoa revela quem realmente ela é. Quando tem muito dinheiro e muito poder: porque não precisa prestar contas a ninguém do que faz ou pensa; quando não tem nada: porque aí se descobre se é ela realmente capaz de dividir o seu ‘nada’ com quem está em uma situação ainda pior; e quando está em um lugar onde ninguém a conhece: porque pode assumir a identidade que quiser e fazer o que bem entender sem nenhuma tipo de censura”: Três contextos onde o verdadeiro caráter de uma pessoa é revelado.

O Brasil passa por um momento muito difícil na sua história. Maior do que a crise política, econômica ou institucional brasileira é a crise moral. A igreja de Cristo já foi reduto de uma moral e de uma ética muito superiores aos modelos propostos pelas sociedades ou instituições, mas lamentavelmente ela também tem sido afetada pelas mesmas imoralidades e falta de ética presentes na contemporaneidade. Hoje, a cristandade não influencia mais a sociedade, mas é influenciada por ela por seus valores e contra valores. Onde a igreja se perdeu? Vários fatores contribuíram para tão grande desvio de conduta, mas certamente a falta de profundidade bíblica ocupa lugar de destaque na perda do caráter cristão. Vale observar que a crise da igreja brasileira não algo novo na história do cristianismo.

A “Europa” do fim do século XV e início do século XVI também tinha na Igreja-Estado seu reduto de moral e ética cristã. No entanto, seus valores estavam completamente deteriorados e absolutamente distantes do caráter de Cristo. Guerras, miséria, fome, grandes distorções sociais e um Estado autoritário apoiado pela igreja, colocavam em xeque o caráter cristão daqueles que falavam em nome de Deus e de um modo nunca visto antes na história. A exploração da fé foi a resposta encontrada pelo clero para manter seus privilégios. Construir a basílica de São Pedro foi a saída encontrada para superar a própria crise moral. O preço? Um sacrifício ainda maior de um povo sofrido e atemorizado pela religião que o emaçava com o inferno e o purgatório.

A Reforma Protestante foi uma reação quase “natural” a este estado de coisas. Para os reformadores a autoridade sobre a vida cristã não residia nos sacerdotes ou na tradição da igreja: “fundada por Pedro, sucessor de Jesus Cristo”. Para eles a autoridade cristã vinha da Bíblia (a Escritura). Foi neste contexto que nasceu a expressão de Sola Scriptura (só a Escritura). Para Lutero e os reformadores a Bíblia era o único parâmetro norteador do caráter e comportamento cristão porque, como afirmava: “os papas também erram”. Absolutamente convicto de seu postulado, ele só reconhecia dois modos de ser convencido acerca da fé e do caráter cristão: a razão ou a Escritura. No contexto Reforma, o comportamento que não fosse fundamentado na Bíblia não poderia ser considerado um comportamento cristão. Essa é a herança da chamada igreja evangélica que chegou até o Brasil.

Em meados dos anos de 1960 e 1970 os valores dos evangélicos brasileiros eram claramente reconhecidos. Essa minoria de cristãos era hostilizada, discriminada e até perseguida, no entanto seu caráter e sua postura ética eram inegáveis. Meio século depois o Brasil está totalmente diferente e, infelizmente, os chamados crentes também. Hoje, a Escritura não é mais o padrão de comportamento a ser seguido. Cristo, o fundador da igreja, não é mais o modelo a ser imitado. Suas palavras já não exercem autoridade sobre a vida dos crentes. Hoje, a igreja evangélica atende aos anseios de uma sociedade egoísta e hedonista. Neste sentido, ela tornou-se uma igreja de varejo onde cada grupo escolhe o que melhor lhe agrada. A proposta da Reforma não encontra eco no coração do crente contemporâneo e os valores distam, e muito, do ideal de seu fundador, o Cristo. Segundo a Escritura o cristão deveria manter-se integro é qualquer situação. Seja na maior riqueza, seja na mais absoluta pobreza, seja em algum lugar anônimo: como a Internet, por exemplo.

No atual contexto de violência, miséria e desigualdades vividos no Brasil, o comportamento cristão tem oscilado entre dois extremos: passividade ou violência. Mas Jesus, o Cristo, jamais foi violento, jamais promoveu a morte, jamais foi injusto, jamais usou seu poder em benefício próprio. Jesus, o Cristo, sempre fez aos outros aquilo gostaria que a ele fizessem, mesmo quando recebeu a injustiça e a calúnia como prêmio. Nascido no legalismo do “olho por olho e dente por dente”, Jesus, o Cristo, tornou-se um subversivo ao judaísmo que aprendeu na infância. Mais do que ensinar ele viveu situações como: “ofereça a outra face”, “bendiga os que lhe amaldiçoam”, “pague o mal com bem” etc. Foi principalmente sua vida exemplar que “contaminou” milhares de pessoas ao longo da história.

Mahatma Gandhi, um reconhecido pacifista hindu, tinha dois livros de cabeceira. A Canção Celestial (escritura hindu) e o “Sermão da Montanha” (Mateus 5-7). Certamente foi à luz do segundo que Gandhi desenvolver o conceito de luta pelo “princípio da não violência”. Os valores morais de justiça e liberdade aprendidos na Bíblia impulsionaram Martin Luther King Jr. a lutar por igualdade em seu país. Suas ações eficazes levaram a mudar a Constituição garantido os direitos civis para os negros estadunidenses. Nunca pelo ódio, nunca de modo violento a exemplo de seus antecessores, Gandhi e Jesus. Pacífico, mas não passivo. Madre Teresa de Calcutá doou toda sua vida em favor dos leprosos abandonados da Índia a partir dos ensinos de Jesus segundo Mateus 25 (o juízo do Filho do homem). À frase inquisidora de um homem muito rico: “eu não daria banho a um leproso nem por um milhão de dólares”, encontrou a inquietante resposta da Madre Tereza: “Eu também não. Só por amor se pode dar banho em um leproso”.  Esse tipo de motivação deveria calar fundo no coração do cristão autêntico. Esses são alguns exemplos de pessoas que jamais se conformaram a um mundo injusto é cruel sem, contudo, abandonar os princípios bíblicos em suas ações.

Certamente esses são tempos difíceis para igreja de Cristo. Tempo de grande apostasia e muito engano religioso. Tempos de muito ódio, egoísmo, indiferença, ausência de misericórdia e muita, muita hipocrisia religiosa. Na parábola do juiz injusto, que apesar de não temer a Deus atendeu o clamor da viúva, Jesus faz duas perguntas inquietantes: “Atentai à resposta do juiz da injustiça! Porventura Deus não fará plena justiça aos seus escolhidos, que a Ele clamam de dia e de noite, ainda que lhes pareça demorado em atendê-los? ... No entanto, quando o Filho do homem vier, encontrará fé em alguma parte da terra?” (Lc 18.1ss). Será que o cristão deste tempo ainda crê na plena justiça de Deus? Será que quando o Filho voltar ainda encontrará quem creia nele?

A crise moral brasileira se agrava mais a cada dia. Por um lado ela há de forjar, mais uma vez, cristãos tenazes cuja justiça é igual a de seu mestre, Jesus, o qual preferiu morrer a matar. Há de criar resiliência nessa gente que não abre mão do Evangelho legítimo. Por outro lado, essa mesma crise também há de revelar àqueles “cristãos” que em nada se diferenciam dos não-cristãos – quantas vezes mais justos e éticos que os chamados filhos da luz. Um tipo de gente que se veste como cristão, fala como cristão, cultua como cristão, mas não é cristão, porque, na verdade, nunca foi cristão de fato.

O caráter cristão precisa pautar-se na Bíblia, abandoando as paixões e juízos radicais, precisa voltar-se para justiça com misericórdia, para ação sem violência, para indignação sem ódio. Sobretudo precisa pauta-se no equilíbrio e no discernimento espiritual e não por essa ou aquela ideia de justiça (ou vingança?) imposta por uma sociedade corrupta e sem esperança. Em tempos de crise tanto maior torna-se a importância da Escritura na vida do crente. O caráter cristão em tempos de crise precisa manter-se firmado sobre a rocha e a rocha é a segurança que há nas palavras de Jesus traz.

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